quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Bianca

Bianca andava pelas ruas aquela noite. O de sempre ao seu redor, vigias, prostitutas, polícia, mendigos, gente indo pra festa, gente indo trabalhar. Mais uma noite normal no terceiro mundo, uma grande cidade, bares, esquinas, sarjeta. Vidas destruídas, vidas em construção, o mundo girava e ela parecia uma garota perdida ou desgarrada, mas quem a via não sabia que ela tinha o mundo. Sua pele lisa, macia, seus olhos verdes, seu cabelo castanho e longo, seus 1,60 de altura. Magra, porém esbelta, aparência confiável, uma princesa entre os que vagavam pela noite.

Havia nascido em Praga, mas vivia em Porto Alegre por opção, era muito jovem, não só na aparência como na idade, ainda 18 anos. Filha única de um pai não apenas rico, mas muito poderoso entre aqueles que como ela, vagavam entediados.

Tão jovem e linda, porém tão profundamente voltada para seus pensamentos, buscando respostas, buscando um porque. Era boa, caridosa, amável, ajudava os que necessitavam com devoção e mantinha projetos de cunho social e político. Não entendia, porque nascerá condenada, porque não teve escolha.

Sua mãe morrera pouco depois de dar a luz a ela, não aguentara o parto, e dela pouco restou na vida de Bianca, apenas parentes distantes , que pouco se preocupava em conhecer. Vagava segura pelas noites vadias, sem medo de marginalidade ou de gente como ela, se é que se pode chamar de gente, os condenados. Como seu pai, e todos os outros, era proibida de entrar no céu e no inferno, condenada à vagar para sempre no plano material, e a não poder morrer, não poder se comunicar com nada que não fosse matéria. Presa para sempre em sua mocidade no mundo dos homens.

--O pior miserável é aquele que não consegue falar com Deus—murmurou olhando para o céu estrelado por entre os prédios, parada em uma esquina—isso não é para os ateus, é para nós, os condenados, fadados a vagar nas sombras se alimentando da vida, e o que é vida?

Andou mais alguns metros, passou por um casal se beijando encostado em um carro parado, seguiu até alcançar outra esquina, e tornou a olhar para o céu.

--Sangue é vida—murmurou—é esta a sina.

Tinha o mundo, mas ela não queria este mundo, queria abraçar o cosmos, a essência, queria andar rumo à luz e encontrar Deus. Pensou então em como os anjos os odiavam, o quanto os demônios e anjos caídos os odiavam também, e todos os demais seres, mas não entendia porque, se eram míseras criaturas. O que tinham de tão mal que outros seres não tinham de pior? Eram os controladores do mundo, o flagelo da liberdade, os únicos capazes de castrar o livre arbítrio dos homens fora os próprios homens.

--Não somos assassinos—disse novamente—somos predadores, mas podemos nos alimentar de algo alternativo, não somos demônios, porque temos este destino? Será o que somos, ou o que fomos antes de sermos? Quanto a meu pai ele já foi um homem e aceitou o fardo, mas e eu? Eu nasci assim, eu não tive escolha.

Andou e andou, ela deixou para trás muitos quilômetros naquela noite, conseguia passar despercebida, não tinha medo de nada, ela é quem devia ser temida. Então de repente uma brisa leve, fez com que um pensamento aflorasse em sua mente.

-- A vida é um caminho que todos precisam percorrer, talvez nosso caminho seja mais longo, por isso não morremos. Ou talvez, nosso caminho seja mais escuro. Os espíritos escolhem a vida antes de nascerem, não é possível que um Deus de amor nos odeie tanto a ponto de nos condenar a uma eternidade inteira.

--Isso tudo é tolice sua—disse uma voz feminina ao lado dela—É o lado humano da sua mãe, que renega sua natureza, eu adoro ser assim como sou.

--Eu sei Lilí—disse Bianca—temos uma natureza diferente, mas temos alma sim ao contrario do que dizem as lendas. Nós também somos filhos do Deus que criou os homens.

--Você questiona demais—disse Lilí, uma linda morena de olhos claros que agora se postava ao lado de Bianca e contemplava o céu junto com ela.

--Sabe qual a nossa diferença Lilí?—perguntou Bianca, mantendo os olhos nas estrelas.

--Diga.

--Eu tenho um porque e não sei qual é, eu nasci assim e tenho bom coração, eu sou assim por algum motivo, e vou a fundo atrás deste motivo.

--Pois então conte comigo para ajudá-la quando precisar, mas não espere que eu deixe de ser o que sou, pois isto jamais faria. Agora vou deixá-la sozinha novamente, tenho um homem para devorar em algum lugar desta cidade.

--Que Deus tenha piedade da alma deste homem—murmurou Bianca, e instantes depois, estava sozinha novamente.

--Se não somos Demônios o que somos então?—tornou a murmurar para as estrelas—talvez sejamos apenas a noite.



João P. Rücker

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Dom Eusébio

Era mórbido o fato de que Dom Eusébio havia escolhido morar em um cemitério ainda com vida. Levando seus pertences para uma casa de madeira no topo do tal, e com eles seu piano, que varava as madrugadas, tocando profundas serestas, apenas para aqueles que ali jaziam. Sua humilde choupana, em meio a um pequeno bosque, próxima da cruz das almas, era sem duvida a tumba mais temida, o mais assombrado dos jazigos de uma necrópole mais antiga do que aquela pequena cidade. Não era a tumba morta de mais um que ali descansa, e sim a tumba inquieta de um artista sedento pela mais profunda solidão, acompanhado apenas por fantasmas do passado.

Na noite, notívago, Dom Eusébio vaga por entre os túmulos da triste e silenciosa necrópole. Anda devagar, portando um velho violão, presente do a muito falecido irmão, dedilhando tristes fados de tributo aos jazidos. Toda noite igual, uma silenciosa cantoria, que vai parar por ironia, no tumulo de sua falecida filha, a causa da melancolia. É onde Dom Eusébio chora, ao som do violão, é onde a dor aumenta, e arrebenta em centelhas o coração do velho artista.

E é para sua filha, sua doce e única Elisa, que dedica toda e qualquer canção. Inconformado de perdê-la tão moça, tão bela, ao completar quinze anos, uma pneumonia não a poupou. Sua esposa, não foi párea para seu desejo pela solidão, e por abandono o abandonou, deixando-o assim, solitário e vivendo das migalhas de si.

A ele resta a suplica de um sonho a mais, com sua família, mulher e filha, apenas uma súplica para Deus, a quem amaldiçoa por má sorte. “Deus é a arte do homem” repete aos ventos noturnos toda noite, quando mendiga algum alivio para a dor de sua perda irreparável.





João P. Rücker

sábado, 25 de setembro de 2010

Carta

Eu recém havia acordado e ido até a praça, eles nem sequer haviam dormido, enquanto eu estava sentada no banco eles vomitavam na porta da igreja. Bêbados repulsivos, abandonados por si próprios, me davam um espetáculo subversivo de uma manhã de domingo em um mundinho tão restrito.

A visão chocante da juventude vacilante sob o álcool não me chocava, era apenas o retrato de uma adolescência mediana que já não mexia sequer com o fragmento mais puritano de minha alma. Eu me contentava apenas em não fazer parte disso, mesmo assim, me dispunha a ajudar se a mim ajuda fosse pedida.

Minhas longas madeixas ruivas e meus olhos tão verdes, retratavam uma beleza clássica e única, diferente das comuns levianas, me fazendo chamar mais a atenção por ser uma bela dama e não simplesmente mais uma. Apesar de nem ter chegado aos 20, era mulher demais para minha pouca idade e isso afastava os mais jovens e os de idade próxima, e convidava os mais adultos a algo sério. Mas eu já não amava mais nenhum ser humano, apenas a arte.

Enquanto a maioria era induzida a consumir os “panos” da moda, eu preferia desenhar os meus próprios vestidos, pintar meus próprios quadros e tocar minhas próprias canções no piano, e não dentre as cordas elétricas. No meio te tanta gente automatizada, eu prezava mesmo era meu sentimento sutil, puro e doce. Caminhava entre lindas rosas espinhentas, dando o tom poético ao meu andar rebelde na contra mão de um mundo fútil.

Fico horas escutando sons de caixinhas de musica, tenho varias em minha coleção pessoal, cada uma com uma melodia distinta. Não é algo atual, mas é algo realmente feminino, algo bem caracterizado. “A bela dama das belas artes”, talvez devesse escrever isso na minha lapide, ou então “Um poço de sensibilidade”, mas eu me sinto tão indiferente com alguns as vezes, talvez por eles serem assim tão sem sal.

Porém minha sensibilidade entra em ação quando sinto a agressão, não da vontade de gritar nem bater, e sim chorar, apenas chorar. O sentimento me alimenta, não importa se for triste ou feliz, ele me alimenta, ao contrario de tão somente a pilha, é algo mais profundo, só quem é sensível sabe explicar. Apesar da solidão, vale a pena ser assim, não um ET no mundo errado, e sim uma alma antiga em um mundo moderno. Mas não é um mundo repleto de novidades e sim apenas um “Replay” da mesma modernice batida e ultrapassada, mas agora digitalizada.

Mas o que eu fazia naquela manhã, ainda madrugada de domingo, na praça, sentada com uma caixinha de música, só quem me entende pra dizer, mas como ninguém me entendia... Logo então fui até o chafariz, o guardinha nada me dizia, apenas observava, eu queria ficar ali aquele horário, hora ideal, sem drogados nem medíocres, antes da missa. Antes que os sinos da igreja dobrem e chamem os velhos sofridos para mais uma seção de lamento.

Eu queria estar ali, para ver o dia nascer puro, queria ver amanhã do domingo, sem som alto, nem “tunts” e nem pagode, apenas os pássaros, o vento, nada mais, eu queria apenas voltar sabe. Não voltar para o meu tempo, e sim para o meu porque, cidadezinha antipática e medíocre, não era o suficiente. Quem sabe se eu escrevesse uma carta e mandasse numa garrafa, alguém que soubesse pra onde me levar me resgatasse daquilo.

Pois bem, foi isso que fiz, voltei pra casa a passos largos e comecei a escrever. Papel normal mesmo, coloquei nele um pouco de um perfume francês que comprei, enrolei. Amarrei uma fita para dar um tom de papiro, e coloquei em uma garrafa de vinho antiga e selei com uma rolha. Quando tornei a sair porta afora, vendo a rua ainda vazia, meu coração se entristeceu, a mensagem que havia escrito, para algum marinheiro ou capitão, de nada adiantaria, se o mar estava muito longe dali. Do que adiantaria jogar no rio? Não seria nada romântico, nem poético, só mais uma garrafa para completar a coleção de lixo que boiava naquelas águas podres.

Me sentia inquieta, desesperada, gritando por socorro, querendo ser salva, quem sabe na beira do rio um príncipe parasse para saciar sua cede e de seu cavalo branco? Mas não existem príncipes nem cavalos brancos nessa imundice, e é loucura saciar a cede em águas tão nojentas e poluídas. Estava no meio de um mundo medíocre, perdida e sem esperança, mesmo assim eu me mantinha educada, recatada, e era boa com os que assim mereciam. Mas me sentia só, tão só, tudo era tão estúpido e eu era apenas uma jovem dama entre irracionais, onde estariam os cavalheiros?

Fui até a beira do rio, e ao observar o aspecto fétido de tal, joguei a garrafa com toda força em uma pedra, quebrando-a em muitos pedaços. Logo então fui embora, silenciosamente, derramando uma única lagrima, solitária como eu... mas o vento à levou para longe, sabe-se lá para onde...



João P. Rücker

Conto de Fadas

Alejandro, um homem maduro, polido, educado, conhece-lo naquele bar em uma noite de carência foi marcante. Se aproximou educadamente, me tratou bem, escutou meu desabafo, levou-me para dar um passei até a praça sob o luar e sentamos no banco frente ao chafariz.

E ele então tomou-me em seus braços, deixou minhas lagrimas correrem e meu choro fluir como um orgasmo da alma. Foi um homem, centrado então, um cavalheiro, doce, amável, diferente dos demais.

Ele era um homem de verdade, me chamava de querida, de bonita, de divina, de princesa, sem segundas intenções, apenas me fazia ficar a vontade em sua presença, me deixando desabafar as dores de um mundo podre.

Me tocou como cristal, me protegeu do mau, me fez dormir em seus braços como um bebe desamparado que por fim encontrou seu amparo, e por quase hora senti o maior conforto de toda a minha existência, até que despertei. Seus olhos eram doces, eram simples, seu sorriso quase infantil, com um tom de ternura me fizeram acreditar por um instante, que existia um príncipe encantado frente a mim. Saído dos contos com seu cavalo branco, para me tirar de uma vida de trevas e me levar para um palácio de cristal, mas a ilusão durou pouco.

Hoje ainda sinto pesar na alma não ter ficado com ele, dói lembrar de sua morte, naquela mesma noite doce, quebrando meu conto de fadas em pedaços. Lembro do seu pulso enfraquecendo em meus braços e sua vida deixando o corpo sem sequer ter uma chance de viver ao meu lado o dia seguinte.

Eu sinto demais a sua morte, mas não pude fazer nada, eu estava faminta...

FIM



João P. Rücker

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Ana Carla

Ana Carla era linda, era o máximo, corpo, olhos, cabelo, Ana Carla era TOP. Carro, grana, fama, tudo que mais desejava, vida era balada, amigos, moda, matéria. Ana Carla era desejada, e tinha o homem que quisesse ter, não enxergava perdedores, apenas vencedores, era apenas o que queria ter, o que podia ter. Ana Carla brilhava brilhos, na luz da balada, no sol, alada acima do sapato, o mais desejado, o mais cobiçado. Ana Carla era feliz com o que tinha, até quando lembrava o que mais queria ter, era top, era top, era gata. Ana Carla era glamour, era luxo, era luxuria, era tudo o que as mãos podiam apalpar, era peito, era coxa, era cintura, era tudo que a fazia toda.
Ana Carla era assim, até que seus olhos avistaram Gabriel, então dos olhos correram lagrimas, das luzes da balada a cegueira curada, a luz emanava de onde já nem lembrava, se foram o glamour e a ilusão, a futilidade como em um estalar de dedos foi preenchida. O olhar de Ana Carla viu Gabriel, o olhar reconheceu, mas não o escolheu, pois quando alguém vê Gabriel, esse alguém é que foi escolhido por alguém, e se houver comoção, haverá aceitação.



João P. Rücker

terça-feira, 23 de junho de 2009

Do sertão para o sempre...

Em algum lugar do sertão, onde Deus não escuta, onde a vida é áspera, se é que a vida é vida, estava Nélio. Nélio de Jesus, negro, pobre, esquecido, seus companheiros mortos, todos mortos, tudo acabado, perdido na seca, na caatinga, no nada. No Rifle ainda restavam balas, a peixeira ainda afiada, sozinho, e além disso mais nada, andou por tantos sóis e luas sem rumo, pois no mundo nada além de castigo o aguardava. Levaram os corpos, os cabras e as raparigas, os bichos, tudo. Se escondera por lá, os soldados não o viram, havia fugido? Sentia culpa, vergonha, se sentia mal, foi quando ele apareceu.
No aberto e sem vida, só terra seca, debaixo de lua, ele apareceu, com olhos lindos e claros, com pele tão branca de anjo, e cabelos soltos, um rosto tão belo, falando macio:
--Homem perdido, sem cultura, sem nada, perdido no sertão, procurado, caçado, ninguém da nada por você... pobres coitados, não sabem o valor que você tem. Se alegre homem, é você um homem bonito, um homem jovem, muito jovem, ai parado com fome e sedento me olhando assim com medo. Sente culpa? Não sinta, senti você quando eu sonhava, a minha vontade te fez fugir, para viver, e agora te trago um presente que jamais outro homem aqui no “nada” recebeu ou receberá.
Vestindo trajes finos, cheirando a perfume e vinho tinto, era tão belo para um simples homem, para Nélio um anjo, com jeitinho de capeta. -–Não fale nada homem, suas palavras são cruelmente feias, não diga nada, apenas fique parado. Vou lhe dar de beber, mas isso não vai saciar sua sede, pelo contrário, isso vai fazer dela uma sede permanente, que nunca para, nunca é saciada. Seu nome será esquecido, suas palavras refinadas, sua vida mudada. Bem-vindo a noite homem do sertão.



João P. Rücker